As cores refletidas na rocha guardam em si a energia do centro da Terra. Suas histórias se contam em camadas e texturas que impregnam os poros de todos os cantos. Grãos e pedras revelam suas caminhadas, seus atritos, seus deslizes e erosões, entre o céu e o chão, sob sóis e chuvas, nos incontáveis ciclos de uma jornada infinita.

Marlene Almeida começou seu trabalho há mais de cinquenta anos, instigada pela vibração cromática das barreiras litorâneas da Paraíba. Para a artista, é na pesquisa de campo que a obra de arte primeiro acontece: no encontro de cores, texturas e cheiros de cada solo. Sua prática envolve um trabalho meticuloso e interdisciplinar a partir de expedições artístico-científicas ao redor do Brasil e do mundo. Durante as viagens, ela absorve saberes e coleta amostras da Terra, que depois cataloga, processa e transforma em base para suas obras. Em seu ateliê-laboratório, fragmentos de rochas e argilas cuidadosamente separados em frascos formam um imenso arquivo que guarda a memória molecular do chão de onde vieram. Entre a ciência, a alquimia e a poesia, é ali que a artista transmuta em matéria-prima e metáfora resíduos de falésias, vales, planícies, morros, estradas e cavernas. Ao usar procedimentos comuns aos campos da química, da geologia e da arqueologia, seu processo articula investigações sobre a estabilidade, durabilidade e outras características de cada solo, com reflexões filosóficas sobre a ancestralidade telúrica e a sedimentação policromada de suas entranhas. Por meio de experimentos com os espectros e as nuances de pigmentos naturais de cada local, a artista reelabora as essências da crosta terrestre. Entre o estado sólido e aquoso, suas pinturas, esculturas e instalações sintetizam e reimaginam a experiência do planeta, propondo imersões entre tons terrosos que, a um só tempo, afirmam a memória e conjuram novos sentidos para os lugares por onde a artista passou.

Para o 38º Panorama, Marlene Almeida apresenta duas obras com dinâmicas distintas. Derrame (2024) é uma instalação inédita feita com recortes de algodão cru tingidos com pigmentos originários do basalto, rocha vulcânica que, ao se decompor, produz argilas das quais se extraem tinturas. Impregnados com tons de terracota, ocre, marrom e cinza, os tecidos trazem alta densidade energética, encarnando a temperatura da terra e a história das diversas localidades em que foram coletados1. A artista encadeia os pedaços para formar uma montanha que serpenteia o espaço, remetendo ao animismo das rochas em contínua transformação. Na outra obra, Tempo voraz II (2012), Marlene Almeida comenta sobre questões existenciais diante da fugacidade da vida. A artista reinterpreta o uso milenar de ampulhetas como artifício humano para medir o tempo e conferir-lhe materialidade por meio da areia que escorre dentro de cápsulas de vidro. O trabalho, que está ligado a uma série iniciada entre 1999 e 2000, é composto por cinco sacos de algodão cru preenchidos com terras de diferentes lugares do Nordeste brasileiro e tingidos, na metade de baixo, com pigmentos de terras escuras. A imagem que se cria é de uma oposição entre claro e escuro, positivo e negativo, calor e frio, vazio e preenchido. Nestas ampulhetas em que ambos os lados estão fechados, a areia imobilizada é uma manifestação do desejo de parar o tempo. No entanto, o contraste que enxergamos parece inevitavelmente vivo, tal qual a voracidade do tempo, que tudo permite e tudo consome, que tudo cria e tudo destrói. 

38º Panorama da Arte Brasileira: Mil Graus
Germano Dushá, Fabricia Ramos, Ariana Nuala
2024