Os trabalhos mais recentes de Mariana Palma apontam outra orientação em seu projeto artístico, um aprofundamento não no repertório histórico das referências em suas obras anteriores — o Barroco e o Rococó, a pintura e o desenho dos artistas naturalistas, os vitrais e os motivos decorativos, a moda, a arquitetura e o design —, mas na ourivesaria mesma da pintura, no aprimoramento do processo generativo das imagens, que transita entre a alta tecnologia e o mais refinado artesanato com tintas e pincéis. A artista mantém sua prática figurativa e representacional, mas opera um raciocínio mais abstrato, poético, privilegiando a linguagem pictórica sobre a narrativa. Esse movimento pode ser percebido na instalação à entrada da mostra, uma natureza morta, com a qual propõe uma imersão na pintura, a experiência de um labirinto de imagens diáfanas, justapostas e flutuantes, que envolvem a travessia do espectador por um espaço de luzes, cores, imagens, camadas de transparências, como que penetrando em um quadro.

Agora Palma concentra-se na essência da pintura, o fazer, e na constituição de um imaginário pessoal e original, marcado pela volúpia da forma, a pulsão das cores, e a sensualidade da experiência do olhar. E para isso há um extenso e laborioso tempo de produção do trabalho, que começa com a coleta arbitrária e cotidiana de imagens impressas ou das redes digitais. Todas são transferidas para o computador onde a artista opera, como faria uma inteligência artificial, manipulando milhares de fragmentos visuais: o canto de uma paisagem, uma manga bufante, laços de fitas, partes de arquiteturas, fragmentos de corpos, palmeiras, texturas, transparências, flores, árvores, pedras, frutas, satélites e corpos celestes, noivas, bailarinos… Da combinatória photoshop + o algoritmo poético da artista + o amplo leque de referências, ela escolhe, depois de inúmeras fusões, uma composição digital, uma imagem-modelo, a ser pintada sobre a tela.

As telas, por sua vez, são preparadas com uma pintura de fundo complexa e trabalhosa, uma marmorização, considerada a técnica mais extravagante na decoração de livros desde o século XVI. Nessa base, impressa como uma grande monotipia segundo o desenho da artista na distribuição de pigmentos sobre a matriz, surgem as linhas e manchas que balizam a composição: a paleta de cores, a estrutura do rascunho, a distribuição dos volumes.

Sobre elas, o trabalho habilidoso com tintas e pincéis constrói formas e figurações em composições tramadas, quase sempre em grandes formatos, com especial interesse por linhas e formas curvilíneas, estruturadas por um eixo ou ponto central. Surgem então grandes encenações de pinturas, acontecimentos formais e coloridos em um espaço decididamente ilusório, uma fantasia teatral, escavando o sentido básico de luz e espaço.

Nascidas de uma imagem que existe apenas virtualmente, é notável que o plano da pintura que lhe confere lugar e materialidade, a sua presença no mundo, seja a superfície diáfana de uma pintura sem espessura, sem marcas de pincel ou da mão da artista, similar à dos grandes clássicos, mas também àquelas eletrônicas da sua origem, que parece ironizar. Como se não houvesse trabalho. A mágica ilusão da grande beleza. Entretanto silenciosas, como um flagrante que interrompe uma ação, firmam-se como um intervalo metafísico, sem antes ou depois, provocando um desvio diante da lógica e dos regimes de expectativas que suscitam, da austeridade da sua suposta condição solene, da cultura e tradição em que automaticamente se inscrevem. São trabalhos para encher o olhar, encantar o espectador. Parece buscar uma beleza extrema na pintura e celebrar o prazer do processo, intimista e rigoroso. Uma figuração virtuosa para franquear uma deformação calculada e precisa do real, um estranhamento, situando-a na faixa particularmente estreita de inteligibilidade que sobrevive entre o belo e o absurdo. 

Os bordados são outro resultado da experimentação poética no ateliê, ambiente que, neste caso, merece uma descrição. Volteando um compacto e verdejante jardim interno, além dos materiais e instrumentos tradicionais do pintor – cavaletes, telas, pincéis, espátulas, tintas e solventes – há naquele espaço uma enorme variedade de retalhos de tecidos, rendas, linhas, fitas, caixas com vidrilhos, canutilhos, cristais, lantejoulas; pedaços e troncos de madeira, folhagens e flores secas, flores de plástico ou de papel; pilhas de revistas e livros, reproduções mecânicas de fotos pelas paredes, objetos artesanais; cestas de palha, cabaças, cascas de árvores; caramujos, conchas, fragmentos de peles animais, penas, plumas, plantas, flores naturais e muito mais. São esses elementos que também constituem referências e objetos em toda a produção da artista. Daí que, se nas pinturas as superfícies são chapadas, sem espessura visível, nesses últimos a superfície pode ser, ao mesmo tempo, suave e crispada, marcada por volumes, recortes, saliências, texturas, sempre cálidas e sensuais, como um plano desejante de ser tocado ao conferir materialidade à pintura e abrir o trabalho aos ruídos do mundo.

Por certo desdobram-se da produção pictórica da artista, mas como um calculado contraponto à sobriedade silenciosa das figurações nas pinturas. Entre tapeçarias e estandartes, eles são composições vibrantes, ricas em materiais e detalhes, nada a ver com quilts ou retalhos. A partir de uma imagem impressa em tela de cetim branco, os bordados são superfícies acumulativas, meio magmáticas, serpenteadas e modeladas como um relevo. Um trabalho artesanal com tecidos, linhas e outros materiais, que conta com a colaboração de uma bordadeira – a mão que executa o trabalho não é a de Palma – conforme um acordo entre as artistas. São colagens mimetizando uma pintura dinâmica, com camadas de transparências, amontoados de matéria, luzes e sombras, num comentário ambíguo, meio extravagante, talvez, mas nunca uma paródia; são estridentes, vistosos, sem ser carnavalescos ou frívolos. Remetem à tradição das naturezas-mortas, das tapeçarias, jacquards, brocados, com flores, frutas, caça e pesca usados em decoração, dos panneaux teatrais, dos estandartes das fêtes galantes e das festas populares também. Somam-se ao conjunto da obra como mais uma estratégia para pensar e manter em movimento a pintura e o seu caráter sedutor, envolvente, sua possibilidade de produzir ainda beleza e estranhamento.

Encerram a exposição um grupo de fotografias. Assim como as aquarelas em que formas orgânicas híbridas, delicadas e solitárias pousam sobre o papel, como numa prancha de botânica ou zoologia, as fotografias evocam certas naturezas-mortas mais sóbrias e inquietantes na tradição da pintura, particularmente dos Países Baixos. Fazem parte de um processo de reflexão, são como rascunhos, pequenos ensaios sobre forma, desenho, cor, textura. Algo precioso, íntimo, afeito à prática dos pintores como os cadernos de anotações. Entretanto, ao contrário da combinatória de elementos virtuais para gerar a imagem original da pintura no computador, Palma utiliza elementos materiais, modelos naturais — a mão da artista coletando restos do mundo —, com um procedimento mais especulativo e casual nas composições.

Sobre uma massa de detritos de um aspirador de pó, uma matéria densa, monocromática, acidentada, a artista dispõe flores, frutas, conchas, caramujos, folhas secas, gravetos, fragmentos de ossos em composições bastante simples, mas de grande efeito visual e, eventualmente, metafórico. A estranha objetividade das imagens, com referentes tão explícitos, está permeada por sugestões de passagem do tempo, degradação da matéria, transitoriedade da beleza, erotismo, morte. 

A pintura de Mariana Palma nasce de um espírito colecionista e acumulador, de um olhar atento a todo e qualquer detalhe do mundo ao seu redor. Produz imagens luxuriantes, formas opulentas, uma beleza voluptuosa e insinuante, determinadamente femininas. De um lado sua produção representa, neste momento em que a pintura é mais percebida como manifestação cultural que artística, um engajamento no prazer do processo, no compromisso com a pintura enquanto experiência, linguagem, conhecimento, memória; a pintura como verbo para exprimir ação, processo, desejo, ocorrência. De outro, a artista procura instalar a pintura como um dispositivo de resistência, marcando para ela um lugar disruptivo na visualidade contemporânea, no sentido de interromper, suspender, a normalidade da narrativa banal e sem fim do scroll nas redes sociais. Quer resgatar a experiência da contemplação, o silêncio. Propõe olhar os trabalhos, fechar os olhos, imaginar. E justamente para isso, eles não têm títulos.

A pintura como verbo
Ivo Mesquita
2023