Aos seis anos, quando vivia com a família em Guaíra, no extremo Oeste do Paraná, Lidia Lisbôa colheu em segredo diversas folhas dos pés de feijão guandu que seus pais cultivavam no quintal de casa. Em um cômodo do imóvel, sorrateiramente e com muito zelo, ela pendurou cada uma das folhas na estrutura de metal da antiga cama de campana de um primo de sua mãe. Apreensivo e surpreso com a brincadeira da menina, Paizinho, como era conhecido entre os familiares, pediu que a irmã prestasse atenção no comportamento e na criação da jovem Lidia, pois para ele, aquele gesto se somava a uma série de outras atitudes e revelavam que a então menina era diferente das demais crianças.
Quase trinta anos depois, no final dos anos 1990, Lidia já vivia em São Paulo, quando recebeu a visita do saudoso parente em sua casa, espaço que também lhe servia como ateliê. Ao se deparar com os tecidos, cordas, linhas, barro e todos os demais materiais e instrumentos utilizados por ela para a criação de seus trabalhos, ele a surpreendeu ao contar, pela primeira vez, aquele curioso evento, e finalizou o relato com a frase: “Agora eu entendi”.
Esse caso é apenas um entre as muitas histórias que Lídia Lisbôa compartilhou comigo desde que passamos a pensar em como poderíamos trabalhar junt_s. Não trago aqui essa anedota para provar por A+B que Lisbôa já era uma artista e exercia suas habilidades criativas desde criança, e que Paizinho talvez tenha sido o primeiro a notar tais características – porém, também não refuto a ideia. O que me chamou a atenção desde a primeira vez que ouvi o conto é essa espécie de epílogo: o encontro no ateliê, seguido pelo relato de Paizinho e sua epifania ao perceber que Lidia era uma artista.
Foi também após algumas visitas ao ateliê de Lidia Lisbôa, não mais aquele dos anos 1990, mas em seu espaço atual de trabalho e, como antes, também de moradia, no centro de São Paulo, que comecei a compreender a dimensão de sua poética ao vê-la em ação.
Trabalhando com diferentes técnicas e suportes, desde a performance à escultura e em um amplo diálogo entre passado e presente, Lidia revisita suas memórias de infância e adolescência, vivências familiares e seus primeiros anos no circuito artístico paulistano, como pontos de partida para a construção de sua prática. Lidia Lisbôa: Acordelados se espelha nessas histórias e olha para a prática da artista a partir da criação de cordas, gesto matriz que estrutura seus trabalhos, seja nas esculturas de têxteis, nos trabalhos de cerâmica, bronze ou nos desenhos. O foco principal da exposição recai em duas de suas séries: Tetas que deram de mamar ao mundo, e Cupinzeiros.
Logo na primeira sala do prédio anexo da Galeria Millan, três grandes estruturas têxteis pendem verticalmente do teto. Elas fazem parte da série Tetas que deram de mamar ao mundo, um grupo de trabalhos que a artista desenvolve há mais de dez anos. Produzidos por ocasião da exposição, suas formas aludem aos seios e ao peso do papel social e histórico desempenhado pelo gênero feminino na construção do nosso mundo, como o título sugere.
São esculturas monumentais de crochê e em suas extremidades mais largas quatro cordas, funcionam como suportes para a suspensão dos trabalhos, além de atuarem como as bases do processo de confecção das próprias esculturas. Em vez de utilizar fios de barbante ou de lã, como normalmente se confeccionam peças de crochê, Lidia corta diferentes tecidos no formato de tiras e as utiliza como se fossem linhas. Ou seja, depois de transformar os tecidos em tiras, com o auxílio de uma agulha de bambu, ela dá a laçada inicial e passa a criar os primeiros pontos que a auxiliam na construção das cordas. Primeiro entrelaça os diferentes cordões que a ajudarão a construir uma moldura basilar plana. Em seguida, mantendo os mesmos pontos, a estrutura adquire um formato anelado, à medida que o próprio peso da peça a estica, alargando os pontos de sua base. A artista segue o mesmo processo de construção de pontos e tramas até o afunilamento da outra extremidade, que toca o chão através de uma corda central, que revela a continuidade do material e a linha estrutural de toda a peça. Os pontos da costura são visíveis — a artista não se preocupa em esconder as emendas das tiras —, revelam uma superfície repleta de nós.
Quanto à qualidade dos materiais, Lidia trabalha com tecidos sintéticos e orgânicos. A artista utiliza fazendas acetinadas, translúcidas e foscas equilibrando leveza, brilho e opacidade. O uso de tecidos rugosos, granulados e mais ásperos produz pequenos relevos nas superfícies irregulares das peças. As cores são geralmente suaves: tons de marrom e cinza se destacam, marcando zonas de transição na composição das esculturas, rompendo uma cadeia quase monocromática, composta especialmente por uma vasta variação de tons de brancos — dos mais quentes, amarelados, bege, aos mais frios, acinzentados. Essas diferentes propriedades que compõem suas tramas permitem que ela construa uma coesa rede de texturas que afeta diretamente os aspectos plásticos da escultura e a percepção do visitante.
Na segunda sala, damos destaques a série Cupinzeiros, a mais antiga e emblemática da trajetória da artista. Essas esculturas começaram a ser produzidas por Lisbôa no final dos anos 1990. Lidia fala frequentemente sobre seu interesse, quase uma obsessão, pelos abrigos dos cupins durante a infância e os reiterados pedidos de sua mãe para que ela não chegasse perto daqueles organismos. Mesmo fascinada por eles, a garota jamais se atreveu a tocá-los e aqui, ela não busca meramente representar o formato das edificações que abrigam os ninhos de cupins, mas — através de sua tecno-poética, materializada inicialmente pelo uso do barro — reelaborar a presença de elementos que compunham as paisagens de sua infância.
Assim como na série Tetas que deram de mamar ao mundo, esse grupo de trabalhos é composto pela sucessão de camadas (nesse caso, cordas de barro), resultado de um processo de modelagem manual e de repetição a partir de um gesto matriz. Porém, seu afunilamento se dá em direção ascendente, como uma estalagmite, do piso para o teto. Para a produção de cada peça de cerâmica, Lisbôa separa de blocos de argila a quantidade de material necessária, e com suas mãos pressiona o barro, criando rolos uniformes, que aos poucos são reunidos, um se sobrepondo ao outro, acordelados. Com os dedos, ela imprime sobre os rolos uma espécie de carimbo sobre a argila ainda úmida, produzindo sobre a superfície uma padronagem. Pela primeira vez Lisboa apresenta Cupinzeiros na cor branca.
Do mesmo modo como nas peças em crochê, que pedem da artista uma sequencialidade para dar corpo à escultura, a cada encontro entre as cordas de argila, os dedos apertam e as unem uma nas outras, formando sucessivamente a estrutura e dando volume e forma às peças.
Além dos Cupinzeiros em cerâmicas, produzidos em diferentes períodos da carreira da artista, estão também presentes na exposição um grupo de Cupinzeiros (2021), em bronze, um trabalho da série Cordão Umbilical, escultura formada por fios de arame e botões, e uma série de desenhos (Memórias de rendas, 2020).
Pela primeira vez Lidia Lisbôa desenvolve trabalhos com o metal. Se os Cupinzeiros em cerâmica são peças únicas, o uso do bronze aponta outras possibilidades de reprodutibilidade do trabalho e nos faz especular não apenas sobre o interesse da artista em exercitar suas técnicas escultóricas em outros materiais, como também sobre seu desejo de expansão temporal e sobre a durabilidade de seus trabalhos. Por fim, ao espelharem a estrutura e forma de suas séries mais icônicas, os desenhos marcam um retorno da artista à bidimensionalidade e figuram como pontos de intersecção entre as esculturas têxteis e seus trabalhos em cerâmica e bronze.