O Centro Cultural São Paulo realiza o seu 31º Programa de Exposições 2021 e a prospecção de projetos realizada pela comissão curatorial confirma a opção assertiva por valores democráticos e decoloniais que, felizmente, vem gradativamente pautando as ações das instituições mais imediatamente comprometidas com a construção de uma sociedade onde os debates e as lutas por igualdade de raça, gênero e classe não sejam escamoteados. Esta pretensão, louvável, é o resultado mais evidente da luta dos até aqui excluídos. Em nosso país, como sabemos, são historicamente escassas as políticas públicas ou privadas de estimulo a produção de arte e conhecimento, carência que, aliás, não é fortuita, pois faz parte de um conjunto de estratégias historicamente estabelecidas que pretendem garantir os privilégios dos grupos sociais beneficiados pela cultura da heteronormatividade branca.
Talvez seja pretencioso imaginar, a partir da minha condição e experiência de homem negro, proletário e cisgênero, um expediente intelectual qualquer capaz de decodificar os fazeres poéticos da escultora Rebeca Carapiá, isto porque, na sua complexidade, a artista lésbica, negra e periférica, se constituí como sobrevivente que no seu próprio e enfático dizer era uma espécie de “barco feito para afundar”. Pois, aquilo que ela e outros divergentes representam, constitui-se numa provocação as forças reacionárias que não admitem os corpos diferentes dos modelos estabelecidos. O desafio que eles significam é respondido com a truculência epistemicida e o etnocídio que dela decorre estão expostos aqueles que não aderem aos padrões e ideais éticos, estéticos ou biológicos dos que se entendem hegemônicos.
Também por isso o projeto estético e inevitavelmente ético de Rebeca Carapiá reveste-se de interesse, como todo aquele que tem grande espessura poética, ele tem múltiplos apelos e interesses. Um deles é o que resulta da interpretação que a artista faz da sua história e cotidiano, das suas vivências e das trocas, atravessadas de afeto, que ela consegue estabelecer com os elementos humanos, materiais e imateriais do território que habita, finalmente expressados na produção de conhecimentos e desdobramentos poéticos. Seu território, aliás, “Cidade Baixa” na capital da Bahia, Salvador, está a partir daí e da mesma forma traduzido na sua realização artística.
A maneira como a artista estrutura a sua obra, os resultados que ela obtém a partir das operações que realiza, resultam num vocabulário plástico profundamente pessoal que a distingue, e que (isso é importante) ao mesmo tempo, consagra a história de todo um coletivo de pessoas, mulheres e homens que por sua condição étnica, de gênero e classe foram preteridos da história que se pretende hegemônica. A artista confirma as qualidades que são próprias desse lugar, desse território, humano e geográfico, lugar que impregna de potência aqueles que nele vivem sem dele esquivar-se, esta potência, no entanto, só é passível de ser compreendida se aderirmos aos paradigmas epistemológicos aí produzidos. Se a pouco os adjetivos, preta, lésbica, proletária, e periférica designavam uma situação ou configuravam uma circunstância de fragilidades sociais, carências e déficits, hoje, pelo contrário, eles sinalizam um estado latente de força de realização e assertividade, que lastreado em resiliência permite-nos pretender sair da “grande noite” estabelecida pelo colonialismo.
A matéria bruta do trabalho de Rebeca Carapiá é o ferro, distintivo de Ogum, orixá desse mineral, o ferro. Orixá da guerra, da agricultura, da tecnologia e protetor de artesãos e ferreiros. É o vergalhão de ferro que Carapiá usa para realização de parte central de sua produção, o mesmo vergalhão que é utilizado no princípio das construções, o mesmo que, depois de coberto de concreto e cimento constituí as colunas que nas edificações distribuem o peso entre piso e paredes. xrapiá tem parentesco com o do serralheiro, do ferreiro, do construtor, aliás categorias de trabalho geralmente consagradas pela convenção machista, ao gênero masculino, coisa que Carapiá também subverte. É o diálogo que ela estabelece com o ferro, “as perguntas” que ela faz a ele que conforma a sua poética. Assim, os materiais empregados nas suas realizações estão infiltrados de qualidade e verdade que é própria deles, mas estão subordinados a experiência única da artista, e só a misoginia tão presente ao nosso cotidiano, pode estranhar emprego que a artista faz deste ou de qualquer outro material que seja do seu interesse.
Aquilo que no Sudeste geralmente entendemos por construtivismo, e mesmo por neo construtivismo, não oferece os argumentos exatos a compreensão maior da obra dessa artista, a não ser que dessa noção participe, pelo menos, alguma conjectura em torno do trabalho do também negro e baiano um Rubem Valentim. A abordagem meramente biográfica, necessariamente sociológica, também não traduz com perfeição a experiência da artista, embora ela não possa ser preterida, mas, a sensibilidade empregada na escolha, manuseio e destino que ela dá aos materiais que utiliza está também baseada numa relação remota, que não tem raiz acadêmica; sua experiência na lida com os materiais que emprega é muito anterior ao uso que hoje ela faz deles. E a construção do espaço que surge na sua projeção da sua escultura tem também um caráter gráfico e arquitetônico, e essa projeção, digamos, gráfica de arquitetura, abriga, acolhe, mas não confina quem dele se aproxima.
As conquistas artísticas e intelectuais daquelas parcelas excluídas da população afro atlântica circunscritas no território brasileiro, que sofreram e sofrem as consequências do racismo, da misoginia, da homofobia, não serão melhor compreendidas se também não o for o contexto social e geográficos em que elas são gestadas. Também por isso é importante consagrar obras como as de Rebeca Carapiá que, através da sua complexidade, nos informam sobre experiências fundamentais a serem prospectadas fora do eixo sudestino normalmente contemplado nessas ocasiões.
Carapiá’s work has an affinity with that of the metalworker, the blacksmith, the builder—professions generally assigned by convention, through a sexist lens, to the masculine realm, a notion that Carapiá also subverts. It is the dialogue she establishes with iron, “the questions” she poses to it, that shapes her poetics. Thus, the materials used in her creations are imbued with their own intrinsic quality and authenticity but are ultimately subject to the artist’s unique experience. Only the misogyny so ingrained in our everyday life could find it unusual for the artist to use this or any other material that piques her interest.