O ato de tomar notas é central no comportamento do observador perspicaz: escrever ou desenhar brevemente logo após se deparar com algo bonito, embora a maioria das coisas dignas de nota sejam inefáveis. Um labor que almeja preservar uma memória aberta, a nota – em seu jogo polissêmico, de uma indicação musical a um pensamento anotado – tem a liberdade de não abranger narrativas completas, não oferecendo nenhum contexto rigoroso, mas anotações atraentes para a co-criação fabulativa. Ao mesmo tempo, a nota propõe um sentido empático de compartilhar impressões pessoais do mundo exterior de modo generoso e honesto, reafirmando a subjetividade de quem a tomou enquanto convida o observador a experimentar um ponto de vista ou um estado mental. Em Notas de tempo (Timing notes), Thiago Hattnher (1990, São Paulo, Brasil) apresenta, de forma empática, uma constelação autobiográfica de notas pictóricas que carregam uma sensação de atemporalidade, viva na carnalidade de memórias já passadas e na potência evocativa de saudades duradouras.

A dinâmica pendular entre intenção esperançosa e espontânea decadência – bem como a pintura e a música lidam similarmente com o tempo – pode sintetizar a habilidade de Hattnher de travar elementos esquivos e ambíguos em concisas pinturas de pequeno formato. Congregando delicadas escolhas cromáticas e formais e uma extrema atenção ao suporte – que varia de juta grossa, madeira coletada, fino linho e tela de algodão –, seus trabalhos são recordações de imagens e experiências insubmissos a um gênero disciplinar estrito. A qualidade prateada de pétalas banhadas pela lua coexiste com paisagens lembradas, enevoadas como miragens, em matizados campos geométricos. Mesmo através de um severo processo de acumulação, o artista pinta apenas o suficiente para deixar espaço para o intocado.

Como diagramas não-lineares, as pinturas de Hattnher são usualmente compostas por corpos de cor, arranjos florais e paisagens concebidas em uma estrutura geométrica aparentemente intuitiva. Elementos contrastantes, sutis embora súbitos, agem como rompantes compositivos e cromáticos sempre direcionados a um intento rítmico, cheio de vibrações e tons heterogêneos, de canções-de-ninar a dramáticas sonatas. Postos na mesma hierarquia – um retângulo azul não se comporta como fundo, assim como um buquê de flores ou a silhueta de um monte não obedecem à superioridade histórica atribuída à figura –, esses elementos são todos experimentos imagéticos e poéticos interessados na discussão de ritmo, intervalo e duração. Como uma partitura, eles são intrincados em múltiplas camadas, dissertando sobre esses assuntos não apenas na relação entre si, mas individualmente: cada parte é um microcosmo que reflete decisões densas acerca da fatura, da iluminação pela construção de camadas, do hiato entre as demãos de tinta e do ameaçador momento de parar e considerar a pintura finalizada. Quando compostos, seus elementos congregam a harmonia entre as cordas, os metais, as madeiras, as percussões e as teclas de uma orquestra, cada uma desempenhando um papel específico individualmente e em conjunto.

Hattnher, ademais, reitera a ambivalência de lidar com a imagem enquanto ela está sendo feita. O desafio e o baile, a pausa e a ação, o destino indomável e o planejado desejo – “Eu não ouço a música quando a escrevo. Eu a escrevo para poder ouvir algo que ainda não ouvi”, como posto por John Cage[1], fulcral na prática de Hattnher. Essa postura aberta não apenas ilustra as dinâmicas fluidas do processo criativo, mas coloca o pintor, uma figura de ação, no âmbito da quietude, enquanto a imagem, usualmente vista como passiva, assume o protagonismo. A pintura performa, mesmo imóvel.

Como na música In a Landscape, de 1948, de John Cage e Stephen Dudry, os dois artistas envergam um robusto repertório de música erudita para a experimentação. A música, multissensorial e melancólica, não referencia uma tradição musical ocidental em citações de fácil reconhecibilidade, mas em profunda compreensão e subversão de sua estrutura. Experimentações análogas são familiares a Hattnher, e o pareamento entre música e pintura na leitura de seu trabalho – e também na supracitada In a Landscape – não se faz por acaso. Os aspectos vívidos do processo criativo através da reoperação de conhecimento erudito podem ser exemplificados pela profunda admiração de Hattnher pelas obras de Albert York e Giorgio Morandi, para citar alguns – a justaposição da natureza-morta e da paisagem nas pinturas de York, principalmente nas produzidas entre 1982 e 1983; e a dissolução, por Morandi, de uma barragem histórica que tentaria evitar a mistura entre abstração e figuração.

Com pinceladas que complexificam timbres, as pinturas de Hattnher equilibram a modéstia de uma tentativa – como se proclamasse o descompromisso de ser apenas uma tentativa – e o deslumbramento de seu poder assertivo, sempre ancorado em observações da história da pintura. O artista transmuta essa ambiguidade em retângulos desnivelados, na heterogeneidade da fatura dos corpos cromáticos e no ativo diálogo com grandes temas da disciplina. Nessa exposição, há uma referência direta às últimas flores pintadas por Édouard Manet em uma publicação de 1988 dedicada a esse tópico. Ao pintar sua capa – o que Hattnher já fez com livros sobre Louise Bourgeois, Pablo Picasso, Cy Twombly e John Cage (este último de novo, como um refrão) –, ele não apenas referencia as próprias últimas flores de Manet, mas as reminiscências memoriais que cercam suas relações com essas pinturas, sejam elas através ou fora do livro mencionado: a atmosfera em marrom escuro das naturezas-mortas ao fundo de cada vaso de flor; a deliberação de certas pinceladas que, sozinhas, compõem pétalas; as molduras em linho e madeira dourada que coroam a maioria dessas pinturas mas que foram deixadas de lado nas reproduções do livro; a luva verde-esmeralda ligeiramente desbotada pelo sol; o aspecto granulado da pintura escolhida para estampar a capa, fotografada analogicamente.

Em outro trabalho, Hattnher pinta um mosaico turquesa de lírios brancos sobre uma vasta e árida paisagem cisada por uma estrada sinuosa. Sugere a imagem de um só lírio, replicado como se visto através de um vidro verde escamado, repetindo sua imagem em múltiplas posições. As refrações do vidro causariam suas sutis deformações, engendradas pelas mínimas variações de espessura e concentração de pigmento que compõem a textura do vidro, criando novos e cambiantes fenômenos ópticos e cromáticos. Uma miríade de fabulações é sempre possível ao observar as pinturas de Hattnher, com um ímpeto que encoraja a imaginação sobre as experiências visuais do pintor durante a produção das obras.

Propondo uma estética da receptividade, as deliberações de Hattnher sempre respondem a demandas apresentadas pela pintura em um aberto diálogo com as situações poéticas e pictóricas que ele encara naqueles específicos momentos. Esses ecos meditativos são particulares ao momento em que estão ancorados, reiterando sua irrepetibilidade. Em Notas de tempo (Timing notes), o artista apresenta pinturas serenas com equilibradas magnitudes líricas, a estruturar um fluxo espelhado que oscila entre experiências memoriais e incidentes visuais. Hattnher, um musicista com atentíssimos olhos e ouvidos às eufônicas paisagens sonoras que o cercam, ativamente escuta a pintura, esperando por uma deixa a para começar a tocar. Sempre incerto, esse sinal é, em muitos casos, não ouvido, mas sentido; em outros, ensurdecedor, mas fugaz. Essa indicação sísmica pode conduzir ao erro – o que faz com que o pintor cubra e repinte a tela com frequência – mas ser notadamente precisa, compondo um mosaico mutável de acordes. Uma imagem, então, é uma questão de tempo.

1 Cf. Liz Cora, Words to be looked at: Language in 1960s art. Cambridge: MIT Press, 2010, p. 50.

Notas de tempo
Mateus Nunes
2024