Não parto de um lugar teórico, mas de uma análise da literalidade do encontro entre duas palavras: indústria e cultura. Este lugar frio onde pessoas são substituíveis, lutos não importam, silêncios não são respeitados, orçamentos estão em disputa para a produção da próxima exposição, e espaços curatoriais se apresentam rígidos nos diálogos. A hierarquização das práticas e o artista, enquanto produto-mercadoria disputado por corpos-curatoriais, fazem parte dessa estrutura. A pressa dita o ritmo pela busca da novidade e a política da exclusão é critério de controle.
Nosso avô se afasta de nós, pois é essa cultura que nos rouba os olhos – a indústria com fome. Expor os nossos trabalhos é importante, mas é difícil um diálogo quando vemos pouca ou quase nenhuma presença indígena nesses “aparelhos culturais”. Em grande parte das instituições, o que pauta os “comentários institucionais” está alinhado à ideia de mercado. As nossas subjetividades, fora. Mas, se algo ou alguém se afasta, o que ou quem se aproxima, então?
Neste momento, o mito de origem da arte brasileira, a Semana paulista de 1922, toma conta da cena (seja para re-pensar/criticar/homenagear). Só que partir (apenas) desse lugar é insistir na exclusão das presenças e subjetividades indígenas nas artes. É reduzir a presença daquilo que somos à identidade brasileira. E o que vem depois? Exposições sobre o centenário da Independência brasileira? Daqui a um tempo, uma década pós-centenário modernista? Talvez com uma breve pausa, em 2028, para tratar do mito tarsílico-andradeano (Abaporu-Macunaíma) e retroalimentar esse banquete-metonímico no centenário macunaímico? Simpósios modernistas, ai que preguiça…
É importante saber que há um fio que nos conecta e nos leva a muitos outros pontos de partida e ideias de tempo nesta convenção chamada ARTE. Mas de onde partimos quando se trata das “artes indígenas”? Não é de hoje o debate que a palavra arte para os povos indígenas têm sentidos e sistemas próprios, que evocam constelações de vivências diferentes para cada povo. As exposições de artes com curadoria indígena são evidências disso, tais como Dja Guata Porã (2017), Véxoa (2020), Moquém_Surarî (2021), Nakoada (2022). São exemplos também de como articulamos coletividades e subjetividades. Mas as nossas magias acontecem ainda, simultaneamente, nos “bastidores”.
Em setembro de 2018, durante o evento de 90 anos de Macunaíma que aconteceu na Casa Mário de Andrade, em São Paulo, debatemos sobre o local da morte do alemão Koch-Grünberg (1872-1924), em Roraima. Quando um dos pesquisadores mencionou que a morte aconteceu no Caracaraí (Vista Alegre/RR), a minha parente Roseane Cadete Wapichana, que estava sentada ao meu lado, relembrou para mim: “No mesmo lugar em que morreu sua vó, Gustavo”. E a imagem que se fixou em mim foi: a “substância” do etnólogo alemão, que carrega a história do nosso avô Makunaimî para o seu caderno de campo, e a “substância” do corpo da minha avó Wapichana estão na mesma terra. Ele morreu de malária, ela do coração.
Mas o que significa cruzar esses tempos, encontros e vidas? O fato é que dividem a mesma Terra, o mesmo terreiro, o mesmo espaço: os terreiros de Makunaimî.
Para nós, nosso avô Duid-Makunaimî mora neste tipo
de encontro também, nestas vivências, percepções, referências
e histórias. Mas, de que vale esta contribuição para expressar
isso num aparelho midiático público? Numa revista
de arte contemporânea? Por que colocar estas subjetividades
no campo do julgamento, da crítica ou da partilha?
O fato é que algumas histórias chegam até nós e enquanto netos e netas de Makunaimî nos sentimos responsáveis por elas também. Cabe dizer que alguns cronistas e naturalistas do século 19 não levaram a sério muitas dessas histórias por considerarem “fábulas absurdas” e acreditarem não valer a pena gastar páginas de seus caderninhos de campo. Mas como é que essas histórias resistem ao tempo? “Nosso vô se revela apenas na vivência”, uma parente me dizia hoje mais cedo.
Não cabe a este texto revelar a “moral da história”, ou o sentido disso que acabou de ser partilhado. Mas sabe quando esses sentidos são desvelados? Só é possível a partir da presença indígena porque adaptar-se às nossas subjetividades faz parte desta dança cósmica. Ou as nossas culturas não cabem nesta “indústria e cultura” dominante? Talvez não. Mas Macunaíma, do Mário, continua sendo um fruto de nossa Kultura. Fruto da grande árvore Tamoromu-Wazaká. A grande árvore: o monte Roraima.
Grande árvore? Por hora, basta relembrar que ela remete a origem de nós povos do circum-roraima e está em uma série de obras da Carmézia Emiliano Makuxi, por exemplo.
Makunaima é artista da transformação
Jaider Esbell Makuxi costumava mencionar que nosso avô é artista da transformação. ‘TransMakunaima’, uma série de pinturas do artista Makuxi foram até a Bienal de Veneza 2022 contar esta e outras histórias. Ocupar espaços é reflexo da resistência e da teimosia de nosso avô em persistir em criar mundos possíveis e conectando nossos fios de memórias.
Mas acontece que nosso avô Duid-Makunaimî está afastado de muitos de nós e um dos responsáveis também é a indústria cultural. Nossas Kulturas tem o tamanho do mundo dos sonhos. Mas que outros mundos são criados depois que um livro-fruto, talvez Macunaíma, que nasceu do mundo indígena, talvez da árvore, e foi lançado no mundo para espalhar suas sementes, multiplicando-se até que deste livro-fruto nasceu esta grande árvore e dentro dela uma escola de arte indígena que foi engolida por uma piaba. Depois disso, uma parente Wapichana comeu esse piaba pra nadar mais rápido e se deparou com um corte: a indústria e cultura tornam-se uma peça de museu e o próprio ‘museu’ torna-se objeto de museu, que é devorado por larvas e outros insetos que alimentam-se desta natureza. Mas o que é que acontece depois que cai a grande árvore?