Uma ida à praia é uma das experiências mais simples e prazerosas da vida. Mas a quem é dado esse prazer? A quem ele é proibido? Embora o Brasil, diferentemente dos Estados Unidos, nunca tenha tido leis que sancionassem o racismo e a segregação, essas práticas eram e são padrão, costumeiras, e aplicadas contra a população negra brasileira. Ir à praia sendo um negro brasileiro traz à baila a questão da pessoalidade e, portanto, o direto dos negros brasileiros à tranquilidade em público.
As praias brasileiras enquanto locais desse tipo de encontro relembram a história trágica da escravidão de africanos e seus descendentes. Os primeiros africanos chegaram ao Brasil, após atravessar o Atlântico em barcos, já em meados de 1500. O Rio de Janeiro, onde ficam algumas das praias mais belas e elitizadas do Brasil, foi um importante porto escravagista. Salvador, no estado nordestino da Bahia, também foi. A escravidão no Brasil só terminou em 1888, deixando consequências e legados que ainda afetam demais a vida dos negros brasileiros. Não há como não considerar o policiamento dos corpos negros nas praias brasileiras no século 21 como uma continuação do comércio de corpos negros e da servidão imposta aos corpos negros pelos portugueses e pela elite branca que governava o país. O tempo certamente passou, mas o ponteiro não girou o bastante em direção à democracia racial.
O mais recente conjunto de trabalhos de No Martins confronta as aspirações brasileiras à democracia racial. Em uma série de nove telas de grandes dimensões, Martins retrata pessoas de pele escura de variados gêneros, biotipos, grupos de amizade e dinâmicas familiares, em variados estados de repouso e interação. Seus olhares estão voltados uns aos outros, ao mar, ou ao que quer que estejam observando – mas nunca ao espectador. Intencionalmente, as figuras de Martins não se ocupam de ninguém a não ser elas mesmas e a experiência do sol, do sal e do mar. Deste modo, Martins concede às pessoas negras em suas pinturas uma agência que não é reconhecida na sociedade brasileira como um todo.
Na obra Continuidade (2023), duas crianças pequenas brincam na areia a apenas alguns centímetros dos pés de seus avós. Os avós, que observam seus netos atentamente, estão em pé diante de um ambulante que vende brinquedos de praia. Há uma bandeira do Brasil afixada ao carrinho do ambulante.
A bandeira do Brasil contém a frase “Ordem e Progresso”. O conceito de ordem implica, no mínimo, ações sancionadas pelo estado que permitam a manutenção da ordem. Implica, ainda, que o estado pode decidir impor e fazer valer a ordem como e quando julgar conveniente fazê-lo. Os vinte e um anos de ditadura militar no Brasil afirmaram este conceito. A persistente estigmatização dos habitantes das favelas, imposta, em nome da lei e da ordem, por meio da ação policial nessas comunidades, afirma este conceito. O mais recente governo, liderado pelo político conservador de passado militar, o presidente Jair Bolsonaro, certamente afirma este conceito.
A bandeira brasileira de Martins contém a frase “Progresso é liberdade ao povo”. Aqui, Martins sugere que a libertação traz a possibilidade de relaxamento da vigilância e, posteriormente, de alegria e descanso de fato para os negros brasileiros. Ao escolher a liberdade, os negros brasileiros deixariam de ser sujeitos politizados à mercê dos interesses de um sistema que almeja seu fim. Sua humanidade não estaria em perigo.
Outra obra, Vendedores (2023), retrata cinco vendedores ambulantes de praia, cercados por suas mercadorias, conversando entre si durante uma pausa no trabalho. Ao fundo, três jovens mulheres banham-se nas águas do Oceano Atlântico. Num país como o Brasil, onde a desigualdade econômica é significativa e persistente, os mais socialmente vulneráveis (que são, muitas vezes, embora nem sempre, negros brasileiros) têm poucas opções viáveis e legítimas de trabalho e, por isso, trabalham na economia informal, como é o caso dos indivíduos retratados por Martins nesta obra.
O trabalho de Martins questiona de frente a validade e a fragilidade da democracia racial no Brasil, tal qual evidenciada pela vida cotidiana dos negros brasileiros. Ao retratar o lazer dos negros brasileiros na praia – um símbolo central da herança cultural brasileira –, Martins confronta as crenças fundamentalmente racistas e classistas de uma sociedade determinada a subjugar os negros. Ao afirmar o direito dos negros brasileiros ao prazer e ao descanso, Martins desequilibra o conceito de democracia racial e afirma que um país que acredita que a ordem é essencial ao progresso e que, em nome da ordem e do progresso, suprime a libertação, não pode e não vai apoiar e exaltar a humanidade dos negros brasileiros. Somente invertendo a promessa do estado-nação – e tornando a liberdade (e não o progresso) o resultado desejado – é que os negros brasileiros terão a possibilidade de reivindicar, ocupar e negociar sua humanidade. Uma parte essencial desta negociação é, obviamente, a escolha de quando, onde e como descansar. Contudo, o oposto também pode ser verdadeiro: a sociedade brasileira também não poderá descansar até que os negros brasileiros sejam considerados e capazes de ser humanos por inteiro.