“Pavão de Krishna”, a pintura de maior escala apresentada nesta exposição permite enunciar algumas tematizações, metodologias de composição e complexos processos de organização dos pontos de vista ou enquadramentos que constituem elementos estruturantes da formidável riqueza da obra pictórica de Ana Elisa Egreja.

Começamos por ver que estamos a olhar para um ambiente natural exterior através de portadas de vidro meio abertas. Podemos pensar na ideia tradicional de pintura — e de cada quadro — como uma janela aberta sobre o mundo. Porém, tudo aqui se complica.

A metafórica “janela” é aqui uma porta de uma sala cuja arquitetura podemos imaginar a partir dos azulejos modernistas — desenhados por Athos Bulcão — nas paredes que enquadram a porta de vidro.

A pintura não é só o que vemos fora, para lá da “janela”. Também vemos o lugar onde estamos a ver, não na sua integralidade — que sala é esta, de que casa e quem a habita e está a olhar? — mas apenas através de um enquadramento específico que também nos permite imaginar que estamos talvez a olhar para um palco “à italiana” onde foi recriada uma sala com uma abertura ao fundo através da qual se deixa ver não o “real”, mas um “teatral” exterior.

Saímos do âmbito da “pintura-janela sobre o real” e entramos numa conceção construtiva do espaço que é de raiz arquitetural e teatral. Mas as anomalias ainda agora começaram.

Os protagonistas são vistosos pavões que estão no exterior e no interior do espaço onde julgamos estar. Mais complicado ainda, vemos seus reflexos no chão inundado (e por isso refletor) do espaço interior. Tudo indica que aqui não há personagens humanas para contar uma história. Natureza e construção, exterior e interior se confundem e interpenetram.

A possibilidade de imaginar uma narrativa fica cada vez mais do lado de quem vê, do nosso lado, abandonados — tal como a sala parece estar — à tarefa de adivinhar o que se passa ou terá passado. Entramos no campo da exploração — dúvida, suspense, expectativa — do que em cinema se chama o “espaço-off”, o que não vemos nem sabemos, mas esperamos que acabe nos revelando o segredo da situação.

Procuramos detalhes, indícios que nos possam ajudar. Há vários adesivos auto-colantes no vidro. Quem os colou — não terão sido os pássaros — e quando e o que será que eles nos podem dizer sobre essas personagens que estão off?

A prodigiosa riqueza desta pintura não nos é oferecida como busca de uma solução para um mistério — isto não é uma história policial — mas como demanda de uma multiplicação de mistérios guiados pelos prazeres da beleza: a beleza da pintura.

Os pássaros poderão ser interpretados segundo matrizes simbólicas e por maioria da razão o cordeiro no sofá da pintura “Agnus Dei Pictural” — símbolo maior de valores mais altos — mas essa é apenas mais uma possibilidade. Também nesta tela avulta o jogo entre interior e exterior — palco e janela — aqui organizado de forma mais sistemática. O enquadramento caprichoso do espaço interior — sofá e mesa cortados de um de seus lados — nos sugere e quase nos empurra a imaginar o quê e quem estará à direita do que vemos, off.

O cordeiro enquanto símbolo maior dialoga com variações a partir de naturezas mortas com frutas e legumes cor de laranja sobre uma mesa de formica cor de rosa que reflete a persiana “real”. Elementos pintados com preciosa sofisticação que se manifesta também nas pinturas redondas — “pratos” — e pequenas pinturas de saboneteiras (a que aqui se juntam imagens de toalheiros onde estão suspensas   toalhas bordadas reais, físicas) que já são parte consagrada da imagem de marca da autora. Estas pinturas de menores dimensões são testemunhos, “provas” de uma vivência doméstica quase íntima à qual o nosso acesso, apenas sugerido, permanece vedado. Cadê os corpos?

“Janela com vista para o mar – Praia da Barra, BA” tem para mim um valor especial. Nas minhas recordações pessoais há muitas vistas, através de janelas, daquela que considero a mais bela praia do mundo, a Praia do Porto da Barra em Salvador. A partir de agora a minha estimada coleção ficou enriquecida pela visão desta nova janela imaginada pela artista.

Nas telas maiores, a sobreposição, no sentido literal, de objetos físicos concretos — mais precisamente estores e cortinas — reforça a passagem do mundo da pintura-janela para o mundo da pintura-teatro. A recusa da ilusória transparência da relação entre o real e a sua representação pictórica — que noutras obras foi obtida pela simulação dos efeitos de vidros foscos ou ondulados sendo aqui visível a combinação entre ambos os métodos de distanciamento em “Natureza morta com vaso azul e margaridas” — é enfatizada e ressignificada através da sobreposição de adereços reais que nos remetem para as dimensões da cenografia e dramaturgia, teatrais – e no campo das artes visuais para a assemblage.

Ainda assim, na ausência de personagens humanas e de intrigas óbvias, talvez não se devesse falar de teatro. Certo. Do que falo é de pintura-teatro ou de teatro da pintura.

A única protagonista é a pintora cujo desempenho consiste numa maravilhosa performance, física, que é o ato de pintar: com a riqueza de sensibilidade e emoções que reconhecemos nas cores, texturas, gestos mais exuberantes e detalhes mais sutis, notas de humor ou dramatismo. As personagens secundárias somos nós, aqui, no espaço off.

Se não quisermos ser meros figurantes temos de imaginar as pinturas que vemos no teatro da nossa própria imaginação, esse será nosso privilégio e prazer.

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Texto originalmente criado para a exposição Janelas, Kubik Gallery, Porto, Portugal, 2023

Prazer da pintura em teatro da imaginação
Alexandre Melo
2023