O título da série de pinturas Saboneteiras sugere um enfoque bastante restrito para um conjunto de obras. Ainda assim, descreve de forma precisa o tema das 31 telas de dimensões reduzidas concebidas por Ana Elisa Egreja em 2020 e 2021, durante o período de quarentena em São Paulo. A artista identificou, em um tópico aparentemente banal, uma tipologia verdadeiramente rica e uma imensa variedade. Pintadas como se fossem partes de uma parede de banheiro em escala real, cada tela é adornada com azulejos em uma vasta gama de cores, abrangendo desde pinturas elaboradas e estampas geométricas até pequenos mosaicos. As saboneteiras ora são nichos ou formas em porcelana encaixadas e placas de metal fixadas nos azulejos, ora são feitas de vidro e pairam sobre prateleiras. Elas contêm um ou mais sabonetes e, por vezes, uma esponja. Torneiras aparecem em alguns dos trabalhos e, em um deles, o canto de um espelho de banheiro pode ser entrevisto. Toda casa tem sua versão desta cena, um vislumbre íntimo de uma vida: a parafernália da fundamental função humana de se lavar. Embora diversos estilos de decoração apareçam nas telas – modernista, popular, tradicional e às vezes combinados em uma mesma obra – a maioria possui uma característica levemente ultrapassada, um tipo de estética associada ao século passado, possivelmente encontrada no banheiro de um familiar idoso. De alguma forma, imaginamos nos lembrar destas cenas de banheiro, destas saboneteiras rodeadas de azulejos. Entretanto, por mais convincentes que pareçam ser, nenhuma delas existe de verdade.
As pinturas da série Saboneteiras são uma fusão de memória e invenção, de referências reunidas por Ana Elisa e transformadas em uma colagem a partir de lembranças, de cenas reais e outras retiradas do meio digital. Fruto da necessidade, já que foram pintadas no ambiente doméstico enquanto a artista escolarizava seus filhos em casa, todas as telas possuem tamanho restrito, o que dá a elas um foco intenso. O primeiro desenho de azulejo foi inspirado no piso do estúdio de Ana Elisa, onde a artista molda seus quadros de cenas fantásticas, que pinta as grandes telas. Uma das estampas de azulejo exibe um desenho modernista de Athos Bulcão; já um esquema monocromático tem como origem a Casa de Vidro, de Lina Bo Bardi, na cor azul em vez de verde. Há uma série de motivos incluindo flores e pássaros de Fulvio Pennacchi, além de um azulejo preto-e-branco retirado de um elemento de Flávio de Carvalho. Mosaicos Zellige, característicos do Palácio de Alhambra, em Granada, também aparecem, enquanto a evolução da influência árabe na cerâmica portuguesa e espanhola fica evidente em outros trabalhos. Avançando na história da colonização, azulejos holandeses de uma casa no Recife surgem como referência. Estão presentes um mosaico exibindo um papagaio de cores formidáveis originário de uma casa em Manaus e azulejos em estilo art noveau descobertos na Rua 25 de março, em São Paulo. A proliferação de estilos de azulejos compõe o tema da série junto aos receptáculos de sabonetes em si. Este conjunto bastante distinto em relação à prática artística de Ana Elisa também evoca os relances ou partes vistas nas pinturas de interiores feitas por ela ao longo dos últimos 15 anos.
Antes de Saboneteiras, a única série de pinturas em pequena escala de Ana Elisa, datada de 2016, retratava arranjos de frutas, flores, garrafas e embalagens contemporâneas. Embora pintadas como se vistas através de um vidro texturizado – recurso frequentemente utilizado pela artista em seus trabalhos a fim de diferenciar o primeiro plano do fundo –, trata-se de uma clara alusão à tradição da pintura de Natureza-Morta, tema pelo qual a artista sente-se particularmente atraída devido aos “vestígios ou rastros revelados pelos objetos”, às referências sociais e culturais codificadas neles contidas. A Natureza-Morta enquanto gênero – conforme definido historicamente em relação aos estudos de objeto na Europa durante o século XVII – era considerada o mais baixo na hierarquia dos gêneros de pintura pela Academia, já que se debruçava sobre objetos cotidianos ao invés de retratar a forma humana heroica; também era considerada menos importante que as pinturas de paisagem. Entretanto, este estilo de pintura “inferior” era imensamente popular e floresceu sobretudo durante a Era de Ouro da arte holandesa, incluindo uma variedade distribuída em diferentes categorias. Vanitas, uma destas categorias, tipicamente inclui um crânio junto aos objetos, remetendo a atividades mundanas em uma menção à brevidade da vida humana; a Natureza-Morta da flor, por meio da qual a riqueza era ostentada com a inclusão de espécies exóticas; e ainda o estudo monástico de vasos simples, frutas e vegetais, em uma associação mais espiritual.
Não surpreende que as obras de artistas holandeses do século XVII exerçam fascínio sobre Ana Elisa, se notarmos a importância da luz e da perspectiva em suas próprias pinturas. A artista admira particularmente os interiores de Johannes Vermeer, bem como os trabalhos de Natureza-Morta de Pieter Claesz, com suas cenas extremamente alegóricas; Clara Peeters, aclamada por suas peças retratando banquetes e cafés da manhã; e Jan Weenix, cuja especialidade eram as detalhadas representações de animais mortos. A objetividade destas obras relaciona-se com o realismo, característica tão evidente no trabalho de Ana Elisa. Entretanto, aquelas eram cenas quase sempre construídas, invenções criativamente forjadas a fim de expressar uma variedade de narrativas implícitas. Se, por um lado, a racionalidade e o realismo são impulsos manifestos no trabalho de Ana Elisa, o imaginário e o fantástico também são aspectos significantes em sua pintura de interiores bastante estilizados e povoados por animais e pássaros. Em sua série de saboneteiras, ela empregou uma estrutura organizacional racional para explorar recortes limitados de cenas cotidianas completamente imaginárias que, ainda assim, contêm referências elevadas e populares e as quais insinuam uma gama de narrativas e histórias.
Os períodos de quarentena ou lockdown, necessários diante da trágica disseminação do coronavírus na pandemia de Covid-19, não podem ser comparados ao verdadeiro encarceramento tampouco ao toque de recolher dos tempos de guerra. Mas a habilidade de artistas na adaptação às condições do confinamento pode ser testemunhada em diversas ocasiões ao longo da História, e obras surpreendentes e importantes emergem frequentemente de circunstâncias difíceis. Em face das restrições impostas pela situação, trabalhar dentro dos limites do que é possível, com o que temos a mão ou pela força do acaso, ganha um outro significado, e a invenção criativa e a memória tornam-se ferramentas essenciais. Privada do ambiente de seu estúdio e de muitos dos recursos habituais e estruturas de suporte, Ana Elisa fez uso de seu tempo confinada para produzir pinturas intensamente detalhadas acerca de temas casuais, criando ao longo do processo um vocabulário fascinante sobre um material cultural esquecido.
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Texto originalmente publicado no livro Saboneteiras, Act., São Paulo, Brasil, 2021