Por que as mortes de pessoas pretas não causam uma crise ética?
— Denise Ferreira da Silva
Movimentando-se pela cidade, indo e vindo entre a zona leste e o centro da megalópole de São Paulo, um homem negro com dreadlocks observa o cenário. Em meio aos 12 milhões de habitantes da maior cidade do Brasil, a indignação que paira sob seus olhos é formalizada na precisão das pinceladas. Invisível como todos os demais, ele se agarra à sua cor, bem como às cores das paisagens que contornam suas memórias.
Imagens de geografia racial que tornam o negro visível e revelam o seu ponto de vista: consequências das inequidades socio-raciais do país que teve o maior regime escravagista do planeta.
De costas, com as mãos erguidas e encostadas na parede, No Martins nos conta, em acrílico sobre tela ou placa de ferro, que poderia ser mais um dos jovens negros que morrem a cada 23 minutos no país. E seu concreto é refletido num autorretrato que expõe sua longa trajetória de rua, muros e grafite.
Partindo de seus rincões, contudo, No tem caminhado desde 2017 no sentido de criar permanências, um relato sobre a ocorrência de uma fala que faz história no circuito da arte contemporânea. Contratos de veridicção e visibilidade que buscam fraturar a ideia de marginalidade, apagamento e efemeridade, migrando das condições climáticas do ambiente que o forjou para inscreverem-se historicamente numa tradição de denúncias, um extenso capítulo da história da estética negra nas Américas, nas águas do Atlântico e no exterior.
Além da maneira como os regimes de ver e ser estão presentes nos temas de cada tela através da interação explícita que nos solicita por meio de hashtags, primeiras páginas de jornais, slogans; câmeras de segurança, símbolos, marcas e propagandas, vemos que em Social Signs (Signos Sociais), a própria obra atua como objeto de mídia. É o que vemos, por exemplo, em “Extra Tie” (Gravata Extra), obra que faz referência à responsabilidade do estado sobre a notícia viral que chocou o país: a morte de Pedro Henrique Gonzaga, de 19 anos, assassinado por um segurança com um golpe de jiu-jitsu conhecido como “gravata” na grande rede de supermercados “Extra” na cidade do Rio de Janeiro.
Somadas à sua vocação muralista, as obras do artista são um reflexo deste momento de consolidação do cyber-ambiente como campo de criação, encontro e visibilidade das questões raciais e, também, de atenção para compreender seus efeitos. Analisando-se a poética da presença nos últimos 10 anos no Brasil, nota-se que o artista faz parte de uma geração de artistas que viu o debate sobre a formação da identidade ganhar relevância na internet, mas que também propôs, por meio de sua própria prática, procedimentos de interação entre o online e o offline. Apesar da crítica que já se pode fazer a esses processos representacionais de ultra visibilidade capturados pelo capital tecno-normativo, essas obras são um importante registro histórico de uma época guiada por práticas de resistência e, certamente, de esperança à qual filiam-se importantes artistas afrobrasileiros.
Portanto, creio que se há um abismo entre a afirmação feita em 1926 pelo pensador norte-americano W.E.B Dubois de que “toda arte é propaganda e sempre deve ser” e a atual crise de representação negra, ambas se encontram, mais de 100 anos depois, nas profundezas dos desejos que prevaleciam em seu tempo: criando estratégias de liberdade como quem senta-se diante de si próprio num jogo de peças brancas de xadrez; ressignificar-se trocando o lado da moeda para que ela se torne, em suas notas, um objeto de valor.
Pintando como se fotografasse a violência policial com tinta, No Martins apresenta ao público na Jack Bell Gallery dez obras que delineiam a arquitetura da violência no mundo habitado por um corpo-mercadoria que, numa relação assimétrica de poder, navega por dentre os diversos dispositivos de controle e vigilância, tornando-se invisível cada vez que se aproxima da sua intimidade com a morte.
Recapturando a pergunta da filósofa Denise Ferreira da Silva com a qual iniciamos nosso breve e confinado encontro, em sua primeira exposição individual em Londres, a partir de nossa necrópole, No Martins nos convida, ainda que pareça impossível responder à pergunta, a pelo menos refletir seriamente sobre ela.