Entremos pela sacristia. Pelo espaço onde os trabalhos são feitos atrás do altar, em segredo e meio decoro, num recinto quase sacro. Lugar de mistério, reclusão, labor e testemunho. A revisitar a produção artística e arquitetônica do barroco mineiro, David Almeida (nascido em Brasília, em 1989) se interessa pela pertinência de uma gramática visual deslocada da fé e pelas dinâmicas de trabalho intrínsecas à sua feitura. Reoperando rocalhas, florões e volutas de igrejas de Ouro Preto, Mariana e Congonhas, o artista indaga sobre como a manifestação desses elementos visuais no contexto brasileiro pode evocar uma noção de sagrado a partir de um olhar condicionado, catequizado, mas que por si só não é de ordem divina.
Na potência desse limiar cortante, Almeida emprega motivos e técnicas da policromia sacra — como preparos de superfície com bolo armênio, goma-laca, cola de pele de coelho, têmpera a ovo e cola — como testemunhas de uma crença na pintura como sacerdócio, da prática artística como penitência devocional. As superfícies se inflamam com emergência: complexidade, infinitude, espelhamentos e vertigens são pilares do barroco e da contemporaneidade. Nessa exposição, o artista é atraído pela cópia inexata dos tratados europeus em desobediência taciturna, pela queda gradual de um classicismo na composição de novas tradições, pela contestação de imagens que nos foram impostas ao gosto e ao respeito.
Arriba do chão, no imperativo, já era profecia.2 A terra subiu e se cimbrou com o céu. Os grandes painéis de madeira que cobrem o forro da galeria são menções de Almeida à pintura de forro nas naves, nos altares-mores e nas sacristias de igrejas barrocas do interior mineiro. As intenções primárias desse tipo de pintura, ainda na Itália do século XVII, eram de ser simulacros do céu: através de uma arquitetura fingida e cenográfica, pintada em sugestão de volumes além do tabuado plano, há a tentativa de uma expansão vertical do espaço em rompante, como em usuais cenas de ascensão, em que representações hagiográficas sobem aos céus em apoteose. Há um coeficiente de mistério nesses códigos.
Emula-se uma imagem do que se acredita, uma projeção. O tratado³ do jesuíta italiano Andrea Pozzo (1642-1709) almejava uma disseminação didática de métodos práticos de perspectiva, como um manual de obra. Esses esmerados delírios ópticos construíam falsas cúpulas e falsos céus. (“E nem tinha céu. Não é um milagre? Ver uma constelação sem céu?”)⁴ O livro não empreendia ser um compêndio teórico para estudo acadêmico, mas estratégias aplicáveis a um contexto prático, tratando a pintura como urgência. Estabelecia uma ponte de troca entre o mestre e o discípulo como numa instrução divina, a quem o último obedece em devoção. Pozzo, direta ou indiretamente, agiu sobre a formação de inúmeros profissionais artistas desde o final do século XVII, inclusive na recepção e nas reoperações das tradições europeias no Brasil colonial. É esse ponto de inflexão que interessa a Almeida: o fascínio de uma sempre híbrida tradição pictórica brasileira, incategorizável por sua contaminação, vulnerável por sua impureza, indomável por seu fervor.
As pinturas de Mestre Ataíde e João Nepomuceno, por exemplo, feitas nas Minas Gerais entre os séculos XVIII e XIX, acessam cânones catequizantes e colonialistas em situações muito específicas de certa realidade europeia, mas que se transmutaram, nos contextos de uma ilusória receptividade, em um imaginário mentalmente construído, não visto. As mãos que conduziam os pincéis acompanhavam, dotadas de uma liberdade que rompia com normas⁵, as sinuosidades e os ritmos das espirais e dos concheados azuis e vermelhos, não necessariamente tal como viram, mas como imaginavam que seriam, ou que viram em alguma cópia já alterada produzida a partir de outra cópia menos ou mais alterada. A noção de pureza a partir do contexto colonial é vil e infundada.
A investigação com intenção genealógica de Almeida parece não versar apenas sobre as imagens que formaram tradições artísticas brasileiras, mas sobre a solidez de uma brasilidade multifacetada e corrente. Assim como os modelos imagéticos e decoros conceituais vinham dos tratados italianos, do legado escultórico tirolês, dos costumes ibéricos filtrados por gostos da coroa portuguesa e da incontornável presença dos sistemas afrodiaspóricos e indígenas, Almeida transpõe os ímpetos investigativos concernentes à imagem sobre si, à sua paisagem de peregrinação: a tentativa de compreensão de um ser forjado e permeado pelos fluxos paulistanos, cidade onde vive; pelo cerrado brasiliense, onde nasceu; pelo ficcional sertão nordestino, terra de sua família; e pelo universo imagético mineiro, onde foi arrebatado.
As pinturas de forro de Almeida não apresentam personagens humanos ou divinos, como nas igrejas barrocas. Criam, aqui, locais ermos que testemunham peregrinações, milagres e aparições, entre o cerrado brasileiro e o Getsêmani — próximos, em certa medida, aos trabalhos feitos pelo pintor nos últimos anos, que investigam a natureza da pintura de paisagem, presentes nesta exposição em pequenas obras de madeira em uma das paredes. Numa imagem fragmentada que conduz o observador a atravessar o salão, o artista invoca a sutil solenidade de ter de olhar para cima para ver, como em um chamado para o céu, além da turbulência de ser engolido pela imagem implacável antes de ela ser absorvida em sua totalidade. Nessas pinturas, há uma negociação com o visível, em uma dada inabilidade de apreensão nítida: o gesto do vulto se faz mais importante que o acúmulo espesso de camadas, retomando um ímpeto paradoxal de pintar um corpo na diluição, na passagem, no quase visto. As colinas, cavernas e oliveiras que ilustram as representações dos santos penitentes coexistem com peixes que saltam da água, conchas flamejantes e elementos de um brasão central vazio.
No centro da galeria, Almeida recolhe objetos que o tempo se encarregou de ressignificar e intervém sobre eles. A matéria reivindica sua agência inicial, fazendo os utensílios, ornamentos e ex-votos voltarem a ser madeira viva, retornando a seus aspectos rústicos, acobreados e fibrosos, expelindo em escamas as pinturas e douramentos que a mascaravam. As intervenções propostas pelo artista habitam na fenda entre uma usurpação sacramental e a ingenuidade de reinseri-los em um lugar sensível de objetos de labor — espiritual, físico ou de outra ordem. O tecido verde que cobre as bases e recebe as esculturas cita as capas das enciclopédias de arte que compilam acervos de coleções europeias e buscavam sistematizar, ilusória e artificialmente, estilos artísticos herméticos e uniformes. Os totens são dispostos na nave, respondendo a um mise-en-scène barroco — aquele que era motivo de preocupação dos jesuítas para que não incorporasse elementos do teatro pagão em seus eventos litúrgicos —, profanando o lugar com testemunhas de milagre e trabalho.
No utensílio empregado para fazer chapéus, que se assemelha a um sino maciço partido e atravessado por uma haste de rosca metálica, Almeida azuleja as duas superfícies internas cujas faces não deixam de se enfrentar: um plácido céu noturno, com cruzes representando as estrelas, a confrontar um firmamento turbulento, em revoada, onde os astros existem somente em fé e as nuvens são feitas de muito chão. A forma de tijolo, prensada impensáveis vezes pelo oleiro, torna-se um relicário, um oratório de viagem que se mantém aberto por uma escultura de caveira que nos relembra do pó futuro e do pó presente.⁶
Na última parede da galeria, como se olhássemos a nave do altar para a porta principal — a vista que tem o trabalhador da fé —, há uma cabeceira de madeira pintada que replica, em escala menor, um guarda-vento: aparato de madeira que impedia que os fortes ventos entrassem na igreja e apagassem suas velas, ou que a tempestade infiltrasse. Talhada nas bordas e no coroamento, seu centro é pintado por Almeida com o vestígio de uma paisagem, de uma imagem que permanece sobre a mente mesmo no repouso, a embalar o torpor do sono informe. Imaginar estar deitado e observar a pintura no leito da cabeceira é da mesma ordem do exercício de observar uma pintura de teto: uma condição avessa à frontalidade.
Em muitas pinturas que testemunham milagres de cura, representam-se sujeitos adoentados, prostrados em uma cama, com a santidade salvadora a seus pés. Curioso é pensar que, em muitas dessas cenas internas, próprias de uma clausura, as imagens na verdade levitam e habitam um firmamento sem chão. Retirando a cena do primeiro plano, Almeida continua a produzir suas paisagens áridas e quentes sobre madeira cortada, a investigar a possibilidade de o milagre ainda se fazer presente e a força da paisagem urgir como elemento de arrebatamento e transcendência.
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1. Mateus Nunes (nascido em 1997, em Belém) é curador e pesquisador. Doutor em história da arte pela Universidade de Lisboa, com pós-doutorados na Universidade de São Paulo, na Getty Foundation e na Universidad San Francisco de Quito, dedicou todas as suas pesquisas acadêmicas ao barroco brasileiro, sendo coordenador de cursos sobre o tema no Masp. Escreve sobre arte contemporânea para revistas como Artforum, ArtReview, Flash Art, frieze, Terremoto e seLecT.
2. “Arriba do chão” é o título da exposição individual do artista na Galeria Millan em 2022, bem como do texto da curadora Pollyana Quintella, redigido para aquela ocasião.
3. O tratado Perspectiva pictorum et architectorum foi publicado em Roma, em dois volumes: o primeiro em 1693 e o segundo em 1700. Foi inúmeras vezes traduzido, reeditado e distribuído pelas missões jesuíticas pelo mundo.
4. Milton Hatoum, Dois irmãos. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 29.
5. Reforço que, embora acontecesse incidentalmente, a incorporação de expressões de sistemas visuais afrodiaspóricos e indígenas no contexto colonial não era bem-vinda.
6. A caveira, referência iconográfica do lema latino “Memento mori”, que nos relembra da mortalidade humana, retoma o sermão proferido pelo padre jesuíta Antônio Vieira (1608-1697) na Quarta-Feira de Cinzas de 1672 (Antônio Vieira, Sermões, vol. 1 (org. Alcir Pécora). São Paulo: Hedra, 2019, pp. 53-70).